Em dezembro passado, assistindo ao programa "Leão Lobo visita" encontrei uma ideia motivadora para reflexão. O Leão Lobo entrevistava o cantor e compositor Leoni (Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=miIid-TPTp8>) e, na ocasião, o entrevistado comentava a frase, atribuída por ele a Confúcio, "que você viva tempos interessantes", desejando que todos nós possamos viver tais tempos interessantes. E ontem, acompanhando o curso dos acontecimentos gerados pelo atentado terrorista ao semanário satírico "Charlie Hebdo", fiquei pensando que era o momento de lançar mão da frase citada por Leoni.
Estou vivendo na Europa, no norte da Itália, desde 2011, e considero que ainda conheço pouco a cultura, a política e a consciência coletiva social, mas alguns fragmentos da realidade eu entendo que já vislumbro. Sei que ao manifestarmos uma opinião estamos sujeitos a fazer apontamentos superficiais, generalizantes e no limite distorcidos, porém é um exercício a que não posso me furtar, como cidadã do mundo, em virtude da gravidade da situação.
Nossas capacidades morais e intelectuais são postas à prova e reconceituadas à força pelas circunstâncias emergenciais, pelas contingências que nos afrontam sem pedir licença, daí o interesse de Leoni pelos "tempos interessantes". No marasmo dos dias equilibrados e harmônicos repetimos ad aeternum as nossas virtudes constituídas e aplicadas em situações similares; não progredimos, não realizamos novas empreitadas evolucionárias; não desenvolvemos novas habilidades e competências. Nos tempos interessantes é que nos movimentamos em expansão de nós mesmos, de reencontro com os outros, que redimensionamos nossa tarefa no mundo e mergulhamos nos escaninhos de nossa consciência existencial. Os tempos interessantes nos apresentam graves conflitos e dificuldades imensas para veicularmos em situações inusitadas, principalmente se nos limitamos aos parcos recursos de nossas ideias cristalizadas, de nosso modus operandi caquético.
Reconhecer e encarar os chamados "tempos interessantes" é já uma sinalização de nossa acuidade. Há pessoas que vivem tais tempos sem se aperceberem da oportunidade ensejada para se reconhecerem impotentes, e dali, retirarem forças resilientes para sobrevivência pessoal e coletiva de um processo civilizatório que tenha coragem de se embrenhar por novas veredas. Há pessoas que não percebem os tempos interessantes. E há aqueles que os percebem mas repetem velhos jargões e velhas ideias que limitam a compreensão do fenômeno e, com certeza, se encaminham para velhos erros históricos. Muitos já pedem a pena de morte aos terroristas, como Marie Le Pen, a prefeita de Paris, representante da extrema direita xenófoba européia. Além é claro dos que, à voz miúda, desejam incorporar o "Capitão Nascimento" para erradicar o "mal islâmico da Europa".
Hoje se apresenta à Europa, se não ao mundo todo já globalizado, em termos econômicos, a partilha das misérias e a permanência dos guetos de privilégios. Depois do intenso eurocentrismo sociantropológico e do imperialismo econômico americano, pouco se vislumbra da riqueza proveniente das diferenças, e se faz ouvidos moucos para os lamentos e as necessidades dos historicamente espoliados.
Posso compreender o atentado terrorista mas não posso aceitar justificativas para ele. Uma coisa é o reconhecimento da situação de polaridade instituída entre o mundo islâmico e o mundo ocidental e outra é o assassinato de pessoas que exerciam sua liberdade de expressão. Agora não aceitar o terrorismo e denunciar as atrocidades por ele perpetradas, não implica em que eu renegue o estado de direito ocidentalmente constituído, ainda que visceralmente comprometido com um modelo capitalista-imperialista-eurocêntrico desrespeitoso com os deserdados da Terra. Há uma conquista humana em possuirmos um sistema jurídico que intermedeia o ato da injustiça e analisa causas e circunstâncias antes de aplicar determinadas penas. A pena de morte em si já é um ato bárbaro, mais ainda sendo imediata e sem julgamentos, constituindo-se numa arbitrariedade assustadora, como por exemplo, o extermínio de Osama bin Laden e Sadham Hussein pelo governo norte-americano, o qual coloca a sociedade ocidental em paridade com as atrocidades do terrorismo islâmico. Os atos das polícias que exterminam os prováveis culpados sem julgamento, colocam em xeque todo o sistema de crenças e valores democráticos bem como tiram a segurança de todos os cidadãos, fazendo de qualquer circunstância uma situação de exceção, como no caso da morte dos terroristas.
Não se pode resolver uma situação gravíssima como essa recorrendo aos recursos do "olho por olho, dente por dente". Preciso se faz instalar um diálogo humanamente despojado ainda que profundamente marcado pela dor de ambas as partes.
Preocupa-me a ligeireza e a irresponsabilidade com que se levantam vozes aqui na Itália e em várias partes da Europa, especialmente na França, com relação ao acirramento dos preconceitos, das discriminações, dos desejos de alijamento e extermínio, os quais impedem qualquer ato de racionalidade que considere a humanidade de todos os envolvidos. Termos como "essa gente estranha", e "esses invasores" demonstram uma análise da profundidade de um pires.
O eurocentrismo é uma cosmovisão não transcendida e nem ao menos consegue reconhecer as bases econômicas da criação desse caos histórico agora despejado às portas da Europa, a qual necessita urgentemente aprender a dialogar e não a se limitar à "caridade", originada num mal estar coletivo. Ambiguamente dá-se a esmola e o lavoro nero ou mesmo regulamentado, mas no vocabulário diário há sempre um chiste preconceituoso e vingativo de quem se sente prejudicado pela existência do outro.
Há que se exercitar a alteridade, de ver-se no outro, de se compreender quem é o outro, de encontrar as similaridades, de buscar as causas mútuas que originaram a ambos. As intervenções européia milenar e norte-americana centenária, nas sociedades africanas e árabes, deslocaram propósitos particulares políticos, econômicos e culturais de povos nômades, para um contexto global de modelo ocidental. Por motivações de exploração econômica, acionaram-se armas ideológicas de grande profundidade, as quais expulsaram povos e indivíduos de suas próprias culturas e ensejaram a constituição de uma miscelânia pasteurizada sem identidade clara que se alcunha de "terrorismo islâmico" de caráter histórico vingativo, o qual faz justiça com os próprios corpos. O terrorismo islâmico é renegado por várias autoridades religiosas do mundo islâmico, como Dalil Boubakeur, presidente do Conselho Francês do Culto Muçulmano e Imã da Grande Mesquita de Paris, o qual nomeou o evento de "ato bárbaro"; e também assim, penso eu, devem agir os líderes europeus e norte-americanos, não vinculando a cultura islâmica ao terrorismo.
São esses os "tempos interessantes" que creio vivemos; apesar de todo o horror que me causa, penso que é um grande momento para os processos civilizatórios europeu e islâmico se reverem, buscarem constituir uma nova história que não recorra aos erros do auto extermínio do passado.
Paz e Bem aos povos islâmicos e europeus!
Márcia, a situação é preocupante, pois como vc cita não desenvolvemos novas habilidades e competências, o ser humano continua no marasmo das próprias ideias como verdade incontestável, a história se repete, movimentos onde incentiva ódios coletivos, e a velha Europa xenófoba mostra que se resente quando posta a prova , quando seu orgulho é ferido .E surge os questionamentos :“ Logo conosco, precisamos mostrar o poder.”...e assim o dente por dente ..olho por olho, tão antigo quanto a terra reaparece com nova roupagem globalizada e fica claro a resposta diante dos atentados : ”podem fazer com o outro conosco não”.Então lanço a questão, quantos saíram as ruas como repudio aos conflitos que mataram e continuam matando milhares nos países africanos, na própria Ásia, na America, enfim,nos países chamados periféricos, as espúrias da sociedade. Devemos sim condenar os atentados, buscar meios de apaziguar não encontrei outra palavra,pois exterminar não acredito , são conflitos históricos que nos leva a refletir sobre a atitude individual e coletiva de uma sociedade que é xenófoba, preconceituosa ,onde busca o direito de expressão de igualdade, mas de acordo com seu umbigo. Sabemos da importância destes países ao longo da história, seus benefícios e malefícios, mas Sinto que neste movimento foi lançada a velha frase que conhecemos bem aqui no Brasil. “Você sabe com quem está falando”... você sabe com quem mexeu... e assim convoca o mundo a dar uma resposta que interessa apenas aos grupos de poder. E eu continuo a pensar... e os outros... Será este o momento interessante onde refletimos e visualizamos uma transformação de ideais individuais para o coletivo? Quando por outro lado vejo jovens na busca da igualdade lutando pelo coletivo e sabemos que esta igualdade neste espaço terrestre não existe. Mas estamos aprendendo quem sabe em outro momento, outro retorno neste ir e vir o ideal coletivo seja para a verdadeira igualdade e direito de expressão onde a miséria mental e física fique só na história, e então tenhamos tempos interessantes.
RispondiElimina