Nos meus últimos anos vivendo no Brasil, até 2011, eu desenvolvi um comportamento que, penso eu, me levaria à síndrome do pânico ou no mínimo ao aprofundamento de neuroses; claro que estou exercendo ilegalmente alguma profissão ao fazer um autodiagnóstico, porém, a hipótese é valida. Eu trabalhava nos períodos matutino, vespertino e noturno, em dias alternados, e sair à rua era um tormento, o medo de assaltos e violência era uma constante. Meus filhos e minha mãe me alertavam que aquilo estava além da conta.
Do ponto de vista prático eu sofri, em todos os anos de vida até então, apenas quatro tentativas entre diurnas e noturnas, e ainda assim frustradas, de furto ou algum outro tipo de violência física, o que por si só já me coloca no rol dos sortudos que nada tiveram de prejuízo no âmbito discutido; mas o fato é que eu via, de longe, quando saia da universidade à noite, alunos serem assaltados e, por precaução, além de relatar o fato aos seguranças da instituição, passei a caminhar pelo meio da rua, numa atitude periculosa para mim. Andava rapidamente e com taquicardia quando alguém vinha em minha direção.
Todos os tipos de preconceitos vem à tona quando se esta em situação hipotética de perigo, todos as crenças infundadas, todo o imaginário propalado pela mídia televisiva e jornalística em geral. Vive-se imerso em um imaginário de possíveis tormentos, como numa espera de sua realização.
Depois que vim habitar em colina do Lago di Garda, passei a dormir com janelas abertas, caminhar sozinha por mais de hora por vias ermas durante o dia, e por vias escuras à noite com pessoas da família, sem medo algum. Pois justamente três anos após minha chegada, numa noite em que um familiar não fechou corretamente uma janela da sala, entrou uma pessoa durante a madrugada e levou algum dinheiro, dois computadores e algumas peças de roupas. Ironia do destino e imprevidência do excesso de auto-segurança. Aqui eles pensavam, e eu acreditava, que estávamos no paraíso.
Conclusão, agora eu fiz questão de ferrolhos reforçados nas janelas e estamos implantando sistema de alarme coligado à polícia. Veja só, venho de um país que vive índices elevadíssimos de violência, de uma cidade como Santos que une o crescimento econômico ao aprofundamento da criminalidade, sem nunca ter sofrido um evento real de furto, e acabo num suposto paraíso natural e social onde tenho a casa invadida. Perdi a inocência rsrsrssr
Por aqui, a violência logicamente existe mas era apenas vista pelo noticiário, em cidades grandes, em casos passionais ou na criminalidade sistemática das regiões da Camorra, da Mafia, da Ndrangheta, da Cosa Nostra. Onde moro, o último roubo significativo havia sido em 2000 numa joalheria. Assassinato, nenhum relato recente. Notícias apenas de um amigo da família que viu um vulto pulando a janela mas que nada furtou. Boatos de jovens que furtavam celulares no Valle delle Cartiere.
Duas questões me levaram a escrever hoje, primeiro a insegurança íntima pessoal, em segundo lugar o pensamento acerca do outro, daquele que age contra nós.
Com relação ao primeiro ponto, a insegurança íntima pessoal, penso que devo considerar a condição humana de ser exposto no mundo; o mundo em que vivemos, de sempre, apresenta situações de violência e nenhum de nós está isento de ser atingido por ela; diariamente são guerras, atentados, estupros, roubos, furtos, assassinatos, mas, principalmente, as pequenas violências de uns contra os outros, verbais e gestuais, olhares e comentários, pensamentos escusos. Penso que a violência é um comportamento humano de defesa, um resquício animal da proteção do espaço vital, vi isso por toda a minha vida profissional e familiar; analiso que, pessoalmente, toda violência emitida por mim tem sempre por fundo tal escopo, defender-me. Pretendo preservar meu ego, minhas pequenas e medíocres conquistas íntimas.
Por outro lado, entendo que a violência social gera a violência criminosa. O indivíduo que entrou em casa e se apossou de alguns objetos, tinha a premência de garantir certas necessidades pessoais, assim como meu companheiro se dirige à fábrica para sustentar a família. A diferença entre meu companheiro e o indivíduo que entrou em casa, além de óbvios valores morais, são itens hipotéticos como perspectiva de vida futura, possibilidade de projeto pessoal, educação formal e orientação familiar. Mas, principalmente, uma sociedade organizada que não dá suporte ao desenvolvimento do indivíduo com vistas à sua realização pessoal e dirigido ao Bem Comum, fomenta a violência de toda e qualquer espécie, o que sucede, com certeza, no Brasil e na Itália.
Os primeiros comentários após o furto foram acerca do outro, daquele que agiu contra nós, e foram bem discriminatórios, e isso me fez pensar em como concebemos o outro em nossa vida. Primeiro que ele não agiu contra nós, mas efetuou uma ação que, ao ver dele, era a solução para um encaminhamento de vida, não importava quem seria o prejudicado, bastava ver qual casa tinha as janelas mal fechadas. O "normal" foi culpar o elemento esquecendo que alguém na casa deu sorte para o azar. Segundo que não passou pela cabeça de ninguém que falávamos de uma situação social que se agrava dia a dia por um sistema econômico-social global que gera a massa de desconsiderados que vão cavar, mais cedo ou mais tarde, uma forma de sobrevivência, seja ela adequada, ou não, aos nossos valore morais pessoais.
A verdade é que o outro, o nosso "inimigo", é o irmão em humanidade que não queremos ver, que desejamos seja extirpado e colocado ao largo, o mais longe possível. Eu fugia desse irmão quando dos tempos de trabalho noturno, fujo dele agora na Itália, o Brasil da Europa como dizem alguns alemães.
Uma questão relevante, além de considerar todo o contexto de forja dessa violência sistemática, é, como diz meu filho mais velho, como encontrar o diálogo necessário entre algoz e vítima, entre o eu e o outro, como encontrar um meio humanizado de intersubjetividade, de comunicação verdadeira, legítima e respeitosa, diminuindo mágoas e melindres. Se tenho dificuldades de vivenciar tal papel de abertura com os "inimigos" diários que criamos em nosso imaginário, pense em aproximações com aqueles desconhecidos que se aproximam de nós de maneiras escusas. Creio que ainda não existam soluções imediatas.
A verdade é que é mais fácil apontar para o externo, identificar os bodes expiatórios e renegar nossa parcela, talvez ainda inconsciente, com o quadro geral de violência. Realmente, do ponto de vista da ação imediata, eu nada fiz contra alguém que furta a casa, por exemplo. Porém, na medida em que compro objetos oriundos de uma economia de quase escravidão com produção de objetos à base de matéria prima contaminada, de alimentação de procedência incerta, que valorizo o trabalho não regulado, que me omito nas questões sócio-político-econômicas, que voto sem reflexão, que faço piadinhas e comentários preconceituosos acerca do outro, que constituo uma cosmovisão limitada aos meus pequenos desejos pessoais e às minhas crenças sacrossantas, que renego o diálogo que confronte meus ideais, eu também contribuo para o estado das coisas como estão.
A forma material como constituimos nossas vidas e a noosfera na qual mergulhamos acriticamente, sao totalmente de nossa responsabilidade. E penso que, ao menos, posso procurar entender a segurança íntima como uma construção pessoal e intransferível; é inalienável o direito de conceber conceitualmente o mundo como eu o queira, não como a mídia determina, não como os preconceitos ditaram. O outro não é meu inimigo, é o meu outro eu que foi se encaminhando por outras veredas e que não teve as mesmas oportunidades nem o bom senso de cavá-las nos limites do possível. Eu poderia tê-lo construído diversamente no meu imaginário e, assim, ter vivido diversamente meus temores; a violência seria lida por mim não como um simples ataque pessoal, mas num contexto complexo de amplo espectro.
Realmente é um exercício fantástico conseguir olhar desse modo. É verdadeira e dolorosa essa aproximação do outro. Márcia, vou refletir sobre isso durante dias...Obrigada
RispondiEliminaQuerida Solange, em geral, aos domingos, tenho a tarde livre, se hoje 22 de junho ou outro domingo, voce quiser falar comigo pelo skype, pode marcar um horario, lembrando que estamos com cinco horas de diferença, entao para voce, entre 9h e 13h dai, estarei à sua disposiçao. Mande um e-mail me dizendo o horario que eu coligo. marciaheloisasampaio@hotmail.com Um abraço.
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