Eu penso que toda grande corrupção inicia na pequena corrupção.
Os jornais televisivos, bem como os programas de entrevistas de caráter político, incidem majoritariamente sobre imbrogli, as façanhas, o mau caratismo dos políticos. E a corrupção tem sido um mote muito frequente, seja no que se refere às ações, às práticas entre o setor econômico e a política, bem como à indivíduos isolados que se locupletam do erário público.
Eu acabei de reassistir no youtube a novela Vale Tudo, exibida originalmente pela Globo entre 1988 e 1989. Estávamos entre o final do primeiro governo civil de eleição indireta e o início da primeira eleição direta para presidente da república do Brasil. A novela escrita por Gilberto Braga entre outros, incidia fundamentalmente sobre o tema das corrupções em geral, da dona de casa que trocava a etiqueta do preço no supermercado, até o político em conchavo com empresas de grande porte em época de eleições. Um elemento interessante é que todos os eventos corruptos se davam em torno do desejo de amealhar grana ou diminuir os gastos. O gostinho de ser mais esperto, de levar vantagem em tudo, de deter um poder exercido na surdina, de estar por cima, ficou bem expresso na cena final, na qual o personagem Marco Aurélio "dá uma banana" para o Brasil fugindo num jatinho, impune ele de suas falcatruas públicas e privadas e sua esposa de um assassinato. Em contraponto, o personagem Ivan, envolvido na corrupção de um funcionário público, se entrega para a justiça e vai ao cárcere, dando uma mensagem de que não importa quem faça a corrupção a punição deve ser aplicada, o que é eloquente, afinal ele era o bom moço da história.
Reassistindo a novela é que eu pensei na frase inicial do texto. Na época original da apresentação da novela eu habitava com o pai dos meus filhos, um ativo militante de partido político, e as conversas em casa eram candentes acerca das corrupções engendradas pela classe política na sua função de manutenção da superestrutura justificadora da infraestrutura econômica desigual e exploradora. Os poderes judiciário, legislativo e executivo, todos mancomunados com a burguesia econômica. Nesse caldo de emoções fortes, as discussões se davam em todas as oportunidades, e, assim como hoje na Itália, em época de eleições, as pessoas dirigiam suas revoltas particulares e públicas para a classe política. E recordo que estando na feira do José Menino, bairro da orla de Santos na divisa com São Vicente, eu conversava com uma feirante de frutas que "descascava o pepino" da politicagem. E aí eu perguntei a ela o que faria se fosse eleita para um cargo político, e ela sem titubear me respondeu que arrumaria primeiro sua família com empregos e vantagens e, depois, agiria em prol do povo. Ela não titubeou porque não percebia que seu ato seria tão corrupto quanto o dos políticos por ela agredidos verbalmente. Para ela nepotismo não era corrupção, era cuidar dos seus. Há um esquecimento ou uma inconsciência de que todo ato é político, independente do exercício do poder efetivo na política oficial.
Meu ex-companheiro foi empossado num cargo público acessado por concurso, e daí em diante muitos amigos e parentes o procuravam pedindo empregos, ao que ele sempre negou. Essas pessoas eram boas, aparentemente honestas, e não se observavam na condição de corruptas, ao mesmo tempo diziam que meu ex-companheiro era alguém que havia "subido na vida" e não oportunizara benefícios para a família. Como se fosse um caso de ingratidão e não de correção de caráter.
Há uma miopia social acerca das questões morais nos entremeios dos âmbitos particulares e públicos. Penso que é muito próprio das culturas latinas, onde não há vergonha nenhuma em se praticar pequenos atos que aparentemente não atingem os patamares da grande corrupção. Então, a Mafia, a 'Ndrangheta, a Cosa Nostra e suas relações com os poderes políticos, são corruptas, mas o indivíduo que não exige e não dá nota fiscal, é correto. Não vejo diferença do comportamento do cidadão brasileiro em relação ao cidadão italiano.
Poderia se pensar numa questão cultural de fixação e perpetuação das práticas corruptas nas relações entre os sistemas político, econômico e social do Império Romano, até os vínculos atuais do capital internacional com os países e suas políticas públicas. Raimundo Faoro descreve bem suas raízes brasileiras no livro Os Donos do Poder.
Também é possível incursionar por uma reflexão de caráter moral onde práticas milenares estão atavicamente entranhadas nos sistemas de relações públicas e privadas, principalmente porque não há relevante trabalho filosófico acerca de tais questões no âmbito da educação na Itália. Aliás, nesse quesito o Brasil está muito adiante com a Filosofia como disciplina oficial no Ensino Médio e já um avançado trabalho de relevância de Filosofia para Crianças no Ensino Fundamental. Já há algumas décadas que a crise ética é tema de livros, debates, em escala mundial, mas nos casos específicos que cito, as mudanças mais relevantes são a da exposição midiática dos fatos, mas ainda com pouca repercussão na mudança das atitudes e punições, como é o caso dos políticos notórios no Brasil e na Itália. Tal como na novela do Gilberto Braga, pequenas corrupções dão cadeia, as grandes ficam nas mãos dos famigerados escritórios de advocacia e os recursos infindáveis, além de CPIs que acabam em pizza. Aqui loas ao Ministro do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa que faz um trabalho de fôlego no Brasil contra as impunidades no âmbito da política.
A psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva indica entre os vários níveis de aprofundamento das características de comportamento sociopata, aquele das pessoas que praticam pequenos golpes e corrupções afetando vítimas individuais e instituições públicas, de velhinhos nas filas de bancos até desvio de verbas públicas de hospitais. Todo aquele que se locupleta do outro sem remorso, sabendo que faz algo errado, sobrevalendo seus interesses pessoais aos interesses do coletivo, seria um portador de comportamento sociopata, ainda que leve. Há uma possibilidade de orientar esses indivíduos para evitar o exercício do comportamento sociopata leve com uma educação firme na família e na escola, bem como um constante trabalho de reflexão e conscientização, além, é claro, da punição efetiva, especialmente no que se refere ao exercício judiciário. Uma sociedade forte em valores e práticas ético-morais de respeito ao indivíduo e às instituições públicas, inibe a ação sociopata.
Assim, se pensar como a Dra. Ana Beatriz Barbosa, há uma característica própria do indivíduo que pratica a corrupção, seja a grande, seja a pequena.
Eu como espiritualista, penso que, além das questões antropológicas, culturais e políticas que dirigem nossas ações interpessoais e com as instituições, há também nossos vícios particulares praticados em vidas infindáveis. Em muitas romagens terrenas e extraterrenas, pautamos nossas relações com os outros indivíduos em ideários individualistas, egoístas e de exercício de poder. Algo que em cada um de nós se manifesta.
Aquilo que está radicado na alma só pode ser transcendido quando novas experiências humanas e novas reflexões se apresentarem.
Daí que a corrupção não é questão da política de carreira, mas da política cotidiana das nossas relações conosco mesmos e com as pessoas com as quais nos vinculamos em situações particulares e públicas. Muitos debates televisivos, muita ação reflexiva nas escolas, muito cuidado familiar, muitos movimentos sociais civis; ou seja, uma ação pública constante. Mas, especialmente, uma ação pessoal de caráter íntimo e incomunicável, que se dê na autoobservação das origens e fundamentações de nossos próprios atos particulares e cotidianos, para que possamos erradicar de nossa alma os resquícios das práticas corruptas. Como pensava Pestalozzi, educado o homem em sua própria intimidade, transformar-se-á a sociedade.
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