O João de Barro é um passarinho e o Manoel de Barros é a voz divina e inefável na fala prosaica do matuto, como disse Rochele, minha ex-aluna e amiga pra sempre. A poesia de Manoel de Barros é para ser lida com o gozo infantil de mergulhar os pés num riacho, de rabiscar cores num papel qualquer, de seguir longamente os passos de uma formiga pelo tapete da sala.
Meu eterno amigo João Vieira, professor, entre outras infinitas coisas, de Lógica, sempre repetia que toda solução simples é falaciosa. E penso que as incursões pela vida acadêmica me deram muitos instrumentos de criação de uma realidade como se tudo fosse passível de ser rearranjado de maneira segura e apropriada, tudo muito regulado pela razão e a ciência. As soluções da racionalidade científica são falaciosas porque nos impõem um roteiro metódico de fácil condução mas que pouco agrega em termos de segurança para os dramas humanos e para a pacificação do coração quando a noite cai. A poesia e o cotidiano prosaico podem ser mãos a nos guiar para além das certezas racionais.
E daí que minha tentativa é de refletir sobre a escancarada simplicidade das coisas e pessoas prosaicas, sempre desprezadas na grandiosidade dos temas metafísicos e do cotidiano imponente dos grandes problemas estruturais da humanidade contemporânea, como o cu da formiga citado num poema de Barros, assim como minha vó Cici, mulher do campo e da periferia da vida. Coisas e pessoas inexistentes pela sua aparente desnecessidade no imaginário humano superior.
Eu sempre tive uma atração irresistível pelos cenários e pessoas simples porque sentia, a partir deles, um chamamento de significados que me aprumavam em prol de minhas mais profundas necessidades espirituais e materiais, tudo num desenho único.
Minha vó, já decantada num texto do ano passado, sempre foi uma referência constante em minha vida, e, aos 21 anos, fui para seu local de nascimento e vida até pouco mais de 30 anos, em Minas Gerais. Minha tentativa era de resgatar raízes que não eram apenas óbvias e determinadas mas muito mais de escolhas e autodeterminações. Ali encontrei um paradigma de vida que hoje, em revisitações, se perdeu em termos de organização prática de vida, tudo num modelão globalizado, mas que, do ponto de vista humano, se mantém, em relações mais vivazes e olho no olho.
Aquela coisa de sentar à mesa em torno de um café doce, um pão com queijo, falando de tudo e de nada, coisas da vida, do sentimento e dos sonhos perdidos e redimensionados, era um alimento que me preenchia do gozo barroco do estômago ao céu.
Participando do fã clube Minha Estrela, de puras loas ao Flávio Venturini, revivi em Minas Gerais meus tempos de enlevo emocional ao som dos clássicos do Clube da Esquina e do 14 Bis, do rock progressivo e rural de O Terço. Ali encontrei amigos baianos, cariocas, mineiros e paulistas que partilharam momentos a partir das letras simples e diretas, ou ainda cifradas e complexas,tudo numa construção de cenários de cores e sons que abriam portas de percepção, fazendo das coisas simples da vida uma coisa muito além, sem ter que submeter os atos a situações heroicas e extremas.
Hoje, aqui na Itália, nos domingos em que me embrenho com meu companheiro pelas vielas e caminhos rústicos, pelas trilhas de bosques, parando para observar rochas, plantas, pequenos e quase invisíveis animais, bebendo água fresca e gelada em grotões, no silêncio das palavras sob o som dos passos e a música das árvores, vivo simultaneamente, aqui, e nas Minas Gerais das minhas lembranças e as ruas do Morro da Nova Cintra, em Santos, onde fui criada. Longe da urbanidade modernosa e dos compromissos importantes das vidas agitadas, ouço ecos de um ser que se esforça por se manifestar como eu mesma.
Claro que não sou um vetor retilíneo na impulsão do móvel de minhas realizações, mas propriamente sigo circunvoluções que, como na estética do filme 21 Gramas, dirigido por Alejandro Gonzalez Iñarritu, vou do presente ao futuro e ao passado numa compulsão por incoerências e sobreposições de escolhas que ora são acertadas e logo em seguida são impossíveis de digerir, e na dor e na delícia de se ser o que se é.
Também tenho meus momentos de glorificação da supremacia da inteligência intelectual e da genialidade dos ícones literários, musicais e acadêmicos, mas quando o pano cai e as pessoas e situações são vistas sob uma perspectiva nua e crua, se vê que tudo é demasiado humano e simples, como uma viagem heideggeriana do discurso complexo para a simplicidade do ato que, na sua inefabilidade, revela mais do que se poderia esperar, e que diz mais da essência das pessoas e coisas do que a aparência rebuscada que se faz grandiosa na sua pequenez hedionda.
E é no pequeno, no prosaico, no simples que sinto condições de resgatar um ritmo de vida mais condizente com o significado a ser construído para uma trajetória autêntica, verdadeira, ainda que com recaídas de busca de grandes motivos e aplicação pragmática das horas.
Em verdade, agora, o nada fazer inútil cria ensejos de vôos mentais impossíveis na barafunda da vida útil e progressiva do sucesso contemporâneo.
...
Viva o cu da formiga, viva Cici, viva Manoel de Barros, viva o olhar agudo sobre as coisas e pessoas comuns na simplicidade reveladora do ritmo autêntico da vida.
Nessun commento:
Posta un commento