A motivação para a escritura do presente texto proveio da leitura de um post de um brilhante ex-aluno no facebook ( https://www.facebook.com/rafael.delimaoliveira/posts/985044434855081?comment_id=985633368129521&offset=0&total_comments=8¬if_t=feed_comment_reply ) e a provocação de uma amiga e ex-aluna para que eu me manifestasse.
O texto da postagem discute a reformulação do currículo escolar brasileiro. O autor discorre de maneira crítica e profunda, e, entre suas várias colocações se manifesta favorável a um currículo não disciplinar, nominalmente se referindo à extinção das disciplinas filosofia e sociologia da grade do Ensino Médio.
Eu tenho fortes vínculos com a concepção deweyana de educação, e, portanto, creio na eficácia de um currículo baseado em experiências nascidas de projetos construídos por alunos com a orientação de professores. Creio firmemente que as experiências da Escola da Ponte e da Amorim Lima, bem como da Escola Laboratório de John Dewey, atestam a possibilidade real de se produzir educação de maneira legítima e firmemente calcada no interesse particular e associado de pessoas inteligentes que interagem no ato de ensinar-aprender, independente da existência de um currículo disciplinar.
O currículo escolar brasileiro é imenso em termos de disciplinas e de conteúdos, com privilégios em carga horária para algumas delas, além de haver uma forte direção legal para a orientação dos objetivos, habilidades e competências descritos como ideais para a formação do cidadão e o domínio dos conhecimentos universais, notadamente exagerados na expectativa que acaba sendo um ideal com pouca capacidade de alumiar o trabalho docente na realidade da sala de aula, seja pública ou privada.
Por força desse post eu me entreguei a reminiscências escolares e, de verdade, procurei elencar o que aprendi na escola. Minha educação formal proporcionou muito conhecimento interpessoal, aprendi muito acerca das relações humanas; a escola permitiu que eu conhecesse pessoas interessantíssimas que me apresentaram músicas e músicos, leituras inquietantes, possibilidades de trabalho, novas religiosidades, caminhos políticos e experiências de amor e liberdade. Entre as pessoas distingo muitos professores, bibliotecários e colegas dos bancos escolares. Meus horizontes foram alargados e pude entrever um mundo para além dos limites familiares. Encontrei pares e parceiros que sem a escola formal não teriam atravessado meu caminho e eu teria, com certeza, me estreitado entre os universos de meu bairro e do centro da cidade onde trabalhava em um escritório. Realmente o currículo disciplinar em si pouco me proporcionou em aprendizagem.
Os conhecimentos atinentes às disciplinas só se tornaram realmente conhecidos quando atrelados aos meus interesses específicos, às minhas experiências emocionais, quando atingiram profundamente meus desejos de me constituir como pessoa participante do mundo e como subjetividade que se reconhecia, pouco a pouco, como alguém que pensava de maneira particular e com lances de intersubjetividade, de possibilidades de comunicação com outros seres da mesma espécie, da mesma ou de outras culturas.
Penso que a construção do real se dá num diálogo crítico constante com o ideal. Assim o fizeram Dewey, Paulo Freire, Anísio Teixeira e Rubem Alves, os mais importantes no meu referencial teórico. Como teóricos tiveram o privilégio de construir concepções mais radicalmente posicionadas, numa ação de desconstrução do pensamento vigente com vigor, clareza e profundidade de argumentos apaixonados e iluminadores de novos caminhos; agiram como profetas que apontavam para novos mundos mais acolhedores para a inteligência humana.
Porém, os que tiveram que se imiscuir nas instituições educacionais organizadas, estabeleceram pontes entre a teoria e a prática convencional, afinal, no interior dos estabelecimentos de ensino e dos órgãos administrativos e de avaliação, militam pessoas das mais variadas tendências pedagógico-filosóficas. Para construir novas formas de educar dentro do estado de direito, dentro da sociedade organizada, foi necessária uma aproximação por fases adaptativas de ações intermediárias, afinal, teoria na cabeça de um pensador profissional não entra no dia-a-dia de um professor por osmose. A reconstruçao de um percurso de pensamento e de ação cotidiana não se faz por decreto, a não ser que se aja de forma autoritária, impingindo aos outros aquilo que foi esquematizado brilhantemente entre quatro paredes.
Seja por ação ideológica, por imposição burocrática ou por força física, não se convence ninguém a pensar e agir segundo a convicção alheia. Cada um age no limite entre o que pensa e o que querem que faça. Professores diariamente fazem um meio termo entre atender à orientações legais, determinações administrativas e sua própria concepção e filiação a determinada escola pedagógico-filosófica.
Eu gostaria de ver acontecer em massa a escola sem currículo disciplinar, mas quem saberia fazê-la? Quem saberia dirigir uma escola por projetos? Ou melhor, quantos a desejariam comigo? Na Escola da Ponte e na Amorim Lima as coisas aconteceram porque os educadores envolvidos acreditavam na proposta, estudaram e discutiram juntos, enfrentaram associadamente as dificuldades e o coro e o terrorismo burocrático dos " do contra". A escola sem currículo disciplinar só nascerá quando as pessoas da sociedade brasileira a desejarem, sejam leigos, educadores, políticos, intelectuais e a classe empresarial. Nao se formam homens fora da sociedade, nao há um mundo ideal onde se fazem pessoas; pessoas nascem do cotidiano, de um meio sócio-econômico, de uma cultura determinada, é tudo muito complexo para se resolver com o desejo de poucos.
A única alternativa que eu vejo é a construção de mais experiências com essas novas escolas, nascidas dos desejos de educadores que se encontram e se organizam para exigir do poder público o direito de viverem suas experiências de mudança. A multiplicação de experiências da visibilidade e legitimidade para as ideias e apaixonam muitos que à elas se associam e por elas lutam.
Tendo em vista o imaginário constituído por pais e professores, por representantes da política, da Academia e da economia, todos atrelados, conscientes ou inconscientes, aos interesses neoliberais, penso que é óbvio que não haja desejo em se constituir imediatamente uma escola realmente interessada em formar um indivíduo que pense com propriedade e autonomia consciencial. Entao, como alternativa mediata, defendo a manutenção das disciplinas nas escolas que não desejarem a experiência radical da liberdade curricular, estimulando espaços e tempos para o trabalho incessante de pensamento e construção de experiências verdadeiramente atreladas ao desejo de mudança dos interessados envolvidos.
Quanto a uma mudança radical que extinga o sistema curricular vigente, penso que seria simplesmente abrir mão de uma conquista histórica, especialmente para filosofia e sociologia. Não há professores e alunos ideais para trabalharem com filosofia e sociologia, e com disciplina alguma. Há pessoas reais envolvidas com políticas públicas e que lutam diariamente para encontrar caminhos de realizar seus sonhos dentro dos limites determinados pelas fontes do poder, sejam elas quais forem e emanadas das instâncias mais diversas.
Quanto à eterna crítica aos pedagogos... prefiro não me pronunciar, afinal sou formada em Pedagogia, curso que fiz com paixão, e onde nasceu meu profundo desejo de ter maior fundamentação filosófica para compreender o homem que eu desejaria formar, adequado à cosmovisão à qual me filiava. Da Pedagogia fui para a Filosofia e encontrei, no Mestrado, a possibilidade real de estabelecer um diálogo entre ambas, sendo a segunda forjada pelas experiências da primeira. Só porque os homens se preocuparam em pensar sobre o conhecer é que a Filosofia nasceu, e conhecer é conceito fundamental para a educação. A Pedagogia me permitiu não ficar restrita ao minarete da Filosofia de onde se proclamam maravilhosas ideias que não encontram diálogo com o homem comum que, lá embaixo, no lufa-lufa do dia-a-dia, escuta um ribombo incompreensível. E a Filosofia me permitiu não me entregar mecanicamente aos ditames burocráticos, às orientações legais e à técnica pedagógica sem críticas. Ela me fortaleceu no sentido de compreender mais profundamento o meu ato pedagógico. Mas fundamentalmente, a Filosofia provocou mudanças na minha maneira de ensinar, e a Pedagogia, vivida, me motivou a refletir sobre as concepções filosóficas e os limites de suas expressões.
Do ponto de vista lógico entendo que há uma máquina tecno-burocrática pedagógica em ação, mas há valorosos pedagogos que pensam e atuam de maneira crítica e inovadora.
Estou aposentada, não atualizada teoricamente, e não posso falar da prática das escolas pois, em quase quatro anos, muito já se transformou, mas não me furtei ao clamor da amiga que me instou a expressar minha opinião.
Ao meu brilhante ex-aluno, só posso agradecer sua fala por ela me proporcionar o exercício da reflexão, e digo à ele, especialmente, que seu discurso é um forte elemento daquilo que acredito: é no discurso e no diálogo críticos que nascem as inspirações para ações inovadoras e audaciosas.
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