Recordo que na pré-adolescência eu ficava horas deitada na cama, muitas vezes quase a noite inteira, preocupada se meus comportamentos, sentimentos e ideias eram adequados, se eu estaria à altura das expectativas familiares, em especial às da minha mãe e da minha avó materna. Ao mesmo tempo que sentia que eu pensava diferente das duas e dos demais familiares, também cria que deveria me aproximar mais de suas formas de entender o mundo, o que evidentemente era impossível, não se pode agradar a gregos e troianos ao mesmo tempo.
Aos doze anos eu escrevia quadrinhas com alusões sexuais e havia descoberto com uma amiga, na biblioteca da escola, Maria Helena, como se faziam bebês. Dentro da minha cabecinha eu andava cometendo pecados ao conhecer tais coisas, e ao dar vazão à minha criatividade com tais escritos. Tinha enormes crises de consciência culpada, até que um dia, farta de mal estar, rasguei as tais quadrinhas. Hoje, se as tivesse em mãos, com certeza riria do seu conteúdo ingênuo, mas na ocasião me pareciam muuuiiitttooo pecaminosas.
Era a vivência da culpa como sentimento judaico-cristão descrita por Nietzsche, a noção do pecado como forma de controle da ação individual por meio de dogmas e restrições de uma fonte externa, seja Deus ou uma determinada Religião. No meu caso era a influência de uma religiosidade católica e de um moralismo familiar que aboliam a palavra sexo do vocabulário e das conversas com crianças. A constante associação das palavras "prazer", "sexo", "desejo" e "paixão" com coisas nojentas e sujas, com desrespeito e safadeza. O mal estar civilizatório era vivido por mim e incorporado fisicamente por meio do meu pensamento, dos juízos que eu fazia de meus próprios sentimentos, desejos e ações.
A culpa era a consequência do sentimento de ter errado, ter pecado, fruto da sensação de arrependimento, da vontade de voltar atrás e não realizar nada daquilo, do desejo de passar uma borracha no passado e voltar a viver tudo novamente de uma forma diferente e mais "limpa".
No filme de Woody Allen Manhattan Murder Mystery, em português Crimes e Pecados, a gente encontra o personagem Judah, com Martin Landau. Ele comete um crime e depois seu grande dilema é enfrentar o sentimento de culpa e as artimanhas psicológicas para compensar religiosamente o pecado, para sentir-se melhor com sua própria consciência. Nunca cometi nenhum ato tão radical como o personagem de Landau mas o fato de, enquanto católica, ter me confessado com um padre ou mesmo na confissão comunitária, me fez estabelecer fortes conexões com o tal Judah. Pecar e ter que se confessar com alguém, de se livrar da culpa de alguma maneira. Em verdade o problema do personagem não seria o ter pecado mas o ter tirado a vida de alguém para seu benefício pessoal, como se a pessoa assassinada fosse um objeto a ser descartado. E mais ainda, a questão não era a de como extirpar a culpa, mas como responsabilizar-se por ela, o que evidentemente não o fez.
A minha história psicológica no aspecto de construção e assunção da minha consciência tem sido a de procurar transcender a culpa e substitui-la pela responsabilidade. E ainda mais, que minhas ações não podem mais ser julgadas por determinações externas de ordens, tabus e normas religiosos, familiares ou sociais, mas que a categorização do que eu promovo deve emanar do reconhecimento interno de que minhas ações, pensamentos e palavras, podem atingir outras pessoas e seres de maneira benéfica ou maléfica, e que seja qual for a consequência, eu agrego à mim as energias provenientes do pensamento ou dos sentimentos do possível atingido.
Responsabilidade como pensamento e atitude existencialista (estou pensando especialmente em Jean-Paul Sartre) seria eu entender que estou sempre em um contexto sendo continuamente confrontada com meus próprios atos e com os atos alheios, que tudo o que faço tem repercussões fora de mim, que os ajuizamentos feitos acerca de minhas ações são sempre calcados em valores construídos socialmente, ou, no máximo, criados por mim com as influências do meu meio. E ainda avançando nessa concepção existencialista, não há atos certos ou errados. A grande angústia de quem assume sua existência é a de saber que escolhas conscientes não têm a ver com escolhas certas. Todas as escolhas implicam em consequências agradáveis e em desagradáveis. Não posso responsabilizar ninguém pelo que eu faço, penso ou falo. Eu sou o criador de mim mesmo dentro do meu contexto de eco-auto-construção. Não há apenas existencialismos ateus, como o de Sartre, e eu me incluo entre os admiradores da filosofia existencialista no que diz respeito ao conceito de responsabilidade e de crença na construção existencial dos valores, mas não nego o meu reconhecimento de que há o Amor e o Bem como leis de funcionamento universal. Eu não comungo com a ideia de um Deus antropomórfico a ditar regrinhas básicas de convivência, mas creio firmemente numa organicidade da vida em meio aos viventes do universo que se interrelacionam e estão mergulhados na própria fonte da vida, chame-se isso lá como quiser; e que, de qualquer maneira, isso implica em expandir os conceitos sartreanos para uma mais ampla concepção de mundo.
Então, daí, todas as vezes em que cometi atos sem a devida reflexão e acabei por atingir pessoas, justa ou injustamente, tive que arcar com as consequências, e com isso acabei por abandonar cadeiras de trabalho na docência, funções pedagógicas, relacionamentos afetivos e certas amizades, não sem antes fazer o ritual do mea culpa. Não era uma questão de me humilhar ou fazer um cerimonial para dizer "vejam como eu sou certinha", mas para eu ser justa comigo mesma, assumir perante minha consciência que ao cometer algo inadequado eu deveria arcar com as consequências e evitar as situações que me levariam a incorrer novamente na mesma atitude.
Do ponto de vista espiritual então nem se fale, ou como diz gostosamente minha vozinha "nem falemos!". Quando alguma coisa não andava bem na minha consciência, eu, quando deitava, sentia como se meu corpo espiritual fosse imenso, não num bom sentido, mas como se eu fosse me autoesmagar, diferente daquela expansão gostosa que advém da meditação em que se sente quase desprender de vez. A sensação de culpa era como um imã que me arrastasse pra baixo. Com o tempo fui discernindo que muitas vezes não era eu que me sentia culpada mas era como se alguém invisível me fizesse sentir culpada, era como se uma consciência extra entrasse em minha própria individualidade e me fizesse pensar que eu pensava aquilo. E aí fui me libertando pouco a pouco.
O que eu procuro exercitar ainda hoje é tentar refletir acerca dos meus sentimentos e pensamentos, procurando identificar suas origens, afinal, se eu já desenvolvi o conceito de responsabilidade como transcendência da ideia de culpa, quando me sinto culpada e arrependida aquilo só pode ser de origem externa a mim mesma.
Arrependimento é coisa estranha. Se eu sei que quando agi erradamente no passado (que pode ser um minuto atrás) só agi assim porque não saberia agir de outra maneira, dadas minhas formas de pensar e entender, bem como de acordo com os automatismos irrefletidos, não há o que culpar nem lamentar, é tentar agora empreender um outro caminho, ficar mais atenta para não incorrer nas mesmas inconveniências, consertar o que se fez se puder e, se não puder, partir para um aberto pedido de perdão mental a quem a gente ofendeu ou atingiu de alguma maneira. Me acalma, ao deitar à noite, empreender monólogos silenciosos em que me dirijo às imagens mentais das pessoas ou às situações que me deram sensação de inadequação às leis universais do Bem e do Amor, da solidariedade e do respeito, peço-lhes perdão, explico-lhes porque tudo se deu como se deu e falo que está tudo bem, liberto-as de mim e me liberto delas, envio meus melhores sentimentos e lhes desejo belas e frutuosas experiências de vida aqui, agora e sempre.
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