Assisti uma entrevista que Antonio Abujamra fez com Rubem Alves e matei as saudades. Matei as saudades das leituras, das ideias e do apaixonamento que me fez colocar Rubem Alves nos meus programas de estudos em Filosofia da Educação e em Prática de Ensino de Filosofia, o que acabou redundando em muitas monografias de final de curso baseadas direta ou indiretamente em seu pensamento.
Recordo-me da primeira vez que tive conhecimento de seus escritos com a guerreira Professora Carmen Lydia Dias Carvalho Lima. Entre vários livros indicados eu li Estórias de quem gosta de ensinar. Gostei das histórias, mas não tinha maturidade intelectual e nem vivencial para entender a fundo seu contexto filosófico. Fiquei na superficialidade da moral das histórias, afinal no primeiro ano de Pedagogia aos 18 anos, não é que havia vivido ou estudado tanto...
Ao longo do curso e durante o início de carreira, fui me enfronhando em outros territórios contraditórios, ora no Escolanovismo enquanto exemplo de prática didática, ora na dialética marxista enquanto fundamentação para análise do fenômeno educativo num espectro de interdependência sócio-político-econômico-cultural, bem como de enfrentamento da ideologia dominante e formação da consciência política, especialmente segundo Paulo Freire (no qual eu ainda não havia me dado conta do arcabouço fenomenológico de seu discurso).
Anos depois, num curso de especialização em Educação Brasileira, deitei e rolei em leituras de Antonio Gramsci e Dermeval Saviani, acabando por valorizar por demais a formação intelectual como maneira de autonomizar o indivíduo da ideologia dominante imposta pelas classes homogeneizadoras da cultura. Dar ao indivíduo do povo os instrumentos culturais usufruídos pelas classes político-econômicas dominantes era libertá-lo das limitações ao trabalho escravizador e reprodutor das condições reais de existência. Então, nesse mesmo curso assisti uma aula inaugural de uma disciplina na qual o professor falava de Rubem Alves, exaltando sua teoria, sendo explanada sem indicação de leituras nem maiores aprofundamentos em termos de tempo e espaço. Foi ali e ali mesmo. Eu na minha militância extrema, num momento de envolvimento em greves, cursando Filosofia paralelamente, envolvida na Educação Pública bem como na particular, discutindo o Manifesto do Partido Comunista de Karl Marx e Friedrich Engels, O papel do Trabalho na transformação do Macaco em Homem de Engels, bem como Sobre as Greves de Vladimir Illich Ulianov Lenin com meus alunos de Ensino Médio e Curso Normal, não entendi nada de Rubem Alves. Para mim era o obscurantismo anti-racional e anti-científico, elevando a condição de alienamento da classe dos professores.
Mas penso também que minha condição de pessoa em grave crise existencial, com um relacionamento aos pedaços desde o início, dois filhos pequenos, em meio à turbulência de três empregos e dois cursos, bem como a casa para cuidar e ainda os desejos e frustrações próprios da vida e das minhas contradições enquanto pessoa, me impediram de acessar qualquer coisa do vocabulário e das ideias de Rubem Alves. Imagine para uma militante não revolucionária, mas ao menos reformista, ouvir falar que os "professores deveriam amar", que "os currículos não eram importantes" e por aí vai... Eu nem ao menos entendia algo sério de Friedrich Wilhelm Nietzsche para contextualizar a crítica de Alves e suas proposições.
Levei anos de muitas leituras fundamentais na Filosofia para ir construindo grandes horizontes teóricos, para poder compreender palavras, conceitos e ideias dentro de determinados contextos, bem como muitas "trombadas" na vida para perceber limitações minhas e das várias ideologias enquanto corpos organizados de ideias.
Durante meu mestrado em Filosofia da Educação, passei a me independer mais da Professora Dra. responsável pelas cadeiras que eu lecionava na universidade, bem como de meus próprios dogmas, além de passado e superado tantas tempestades emocionais. Caí do cavalo tantos vezes e tive que me olhar no espelho na nudez da minha alma outras tantas e tantas, descendo ao fundo do poço e tendo que me segurar nas únicas coisas que valem a pena: o amor, a solidariedade, o sentimento. Além é claro de diminuir a arrogância e a prepotência de quem se achava muito e se dava conta então de que a máxima socrática ainda é a de maior validade, a gente só sabe mesmo é que não sabe nada...
Daí para o Rubem Alves foi um átimo.
Um emblema muito forte para mim é o filme Razão e Sensibilidade do Ang Lee, baseado na obra de Jane Austen, em que duas irmas representam os extremos do controle e da exuberância, da emoção e da razão, da contenção e do desregramento, mas também de suas complementações. Penso que eu vivi, e ainda vivo, a contradição de ter também os dois lados muito arraigados em mim e em luta constante, numa tentativa tresloucada de contenção da sensibilidade para poder dirigir minha vida segundo a razão.
Daí que minhas frases com os alunos eram "quem gosta de criança faz criança, para ser professor é necessário gostar de acompanhar o ato de aprender", "eu não tenho que gostar de ninguém, tenho é que ensinar", "sensibilidade é coisa para dentro de casa, o negócio aqui é racionalizar e estudar com disciplina", "não tenho nada a ver com seus problemas, deixe-os fora da sala de aula", "prazer não tem nada a ver com estudar e aprender, é sentar o traseiro na cadeira e se concentrar"... ou seja, minhas aulas eram quase um campo de concentração! Anos depois eu criticaria colegas de profissão que faziam o mesmo que eu em minha primeira metade de vida como professora.
Mas como toda falácia tem perna curta e toda máscara um dia cai, eu também me afoguei em mim mesma e tive que ser macerada como um alho no pilão para exalar o forte perfume aprisionado nas entranhas do meu coração.
Hoje eu sei que para entender o Rubem Alves ou qualquer outro autor a gente tem que estar predisposta pela nossa própria maturação e dentro de um horizonte de perguntas e de insatisfações fundamentais.
Aquela antiga professora não poderia gostar de Rubem Alves, ela era exatamente a que ele criticava e para quem ele indicava um caminho inconcebível, dado ser eu uma pessoa mal resolvida.
Se algum ex-aluno meu dos últimos anos ler esse texto dirá que eu ainda guardava alguns traços da megera, mas que mudei um bocado.
Minhas loas ao Rubem Alves que tem a coragem de incitar em nós o desejo não apenas de sermos melhores professores, mas também pessoas fantásticas que não abandonam a razão mas alimentam, desenvolvem e se guiam pela sensibilidade.
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