Militei na area da Educaçao por 30 anos, sendo 24 de trabalho efetivo, e uma das coisas que mais me incomodavam nos discursos cotidianos escolares eram as criticas às familias. Notava-se claramente um ideologismo mascarador da realidade, um idealismo caracterizado pela lacunaridade, pela abstraçao e pelo universalismo. Familias eram vistas tal como em propagandas de margarina: um tipo burgues universalizado, pai, mae e filhos; sorrisos e mesa farta numa abstraçao das constantes crises economico-financeiras; e por fim, a lacunaridade da inexistencia de contexto real para garantir o café da manha. Qualquer construçao familiar que fugisse a tal estereotipo era nomeada de "familia desajustada", e qualquer dificuldade de aprendizagem e de adaptaçao da criança ao cotidiano escolar era atribuida à familia. Visoes extremamente positivistas no sentido de que analisavam o problema fora do contexto, sem amplitude e com medidas pontuais.
Eu por exemplo, sou oriunda de uma familia que, até a geraçao de meus pais, cumpria o modelo classico burgues ainda que de origem proletaria. Da minha geraçao em diante, as experiencias familiares ja foram construindo quadros que os educadores, em geral, nomeariam de desajustados: separaçoes, unioes fora dos registros religiosos e civis, filhos com mesmas maes e pais diferentes ou vice-versa, filhos criados por avos. Tudo aparentemente muito claro, geraçao da pilula anticoncepcional, do trabalho feminino, da liberalidade de costumes e do afastamento das instituiçoes formais seculares e religiosas. Aparentemente, pois, fazendo um pequeno processo de escavamento nas historias familiares, descobrem-se bisavos e outros que também viveram separados, filhos fora do casamento, pais que abandonavam os filhos e faziam novas unioes, ou seja, tudo como se da hoje so que acobertado pela concepçao idealizada da familia.
Sofri muito na contradiçao vivida por mim mesma; sempre quiz e fiz minha vida a partir dos contextos da pos-modernidade que pretensamente se libertou do paradigma moderno da sociedade industrial e cientifica ordenadora dos costumes. Nao casei formalmente, nao batizei os filhos, separei-me e fiz uma nova experiencia de convivencia. Tudo fora dos padroes classicos familiares. Ao mesmo tempo que me orgulhava de ter me libertado dos tabus, a imagem ideologizada, que estava conceitualmente constituida nos atavismos do meu inconsciente, me cobrava uma vida mais regrada e cumpridora dos modelos, fazendo sempre me sentir inadequada e estranha.
Constituir uma uniao estavel é, sem duvida, um anseio geral, com pouquissimas pessoas que se colocam firmemente na frente das unioes volateis. Mas contra tudo, ha a biologia e a antropologia. Biologicamente a paixao que atrai os casais dura em média dois a tres anos, depois o chamado amor tem que ser construido na raça, com persistencia, paciencia e afinco, digamos que, caracteristicas nao muito cultivadas ultimamente. Antropologicamente analisando, a estabilidade depende dos valores culturais do imaginario coletivo, muitas vezes favorecedores do individualismo egocentrico.
Para os possiveis filhos, uma certa estabilidade na relaçao entre os pais favorece o equilibrio psiquico. Porém nada é garantia. Ha unioes fora dos padroes que geram pessoas bacanas, felizes e equilibradas, e unioes classicas que produzem pessoas em crise permanente, e tudo ao inverso também é verdadeiro. Nao ha receitas e nao ha relaçoes imediatas de causas e efeitos.
Ha a interveniencia individual daquele que por si ja é peculiar ao ponto de sair dos padroes cientificamente esperados e tem um jeito proprio de lidar com a influencia das variaveis socioambientais.
Domingo passado terminou o Encontro Mundial das Familias em Milano. O Papa Benedetto XVI encontrou-se com as familias catolicas e apontou esperanças de acolhimento aos divorciados. A midia local extasiou-se com a existencia publica e manifesta de tantos praticantes e defensores de familias "estaveis". Num mundo de tanta diversidade a intelectualidade militante da pos-modernidade talvez nao esperasse expressoes de alegria, uniao e legitimo congrassamento entre praticantes de uma religiao notadamente dita em crise mundial. Modelos antagonicos que se antepoem e ao mesmo tempo se aproximam. Os catolicos acolhem os divorciados, os pos-modernos observam a existencia de pessoas felizes à maneira convencional.
Dentro de uma visao espiritualista universalista compreendo a familia como um agrupamento de pessoas que trazem individualmente suas historias milenares e seus atavismos bem como herdam determinantes biologicos do grupo ao qual se agregam por meio do renascimento. Entre karmas e dharmas vamos todos realinhando sentimentos e entendimentos conceituais. Mas nao so, familias também sao os agrupamentos dos afins e das linhagens espirituais. Temos todos compromissos pessoa a pessoa mas também enquanto naçoes e culturas.
Tudo para mim se encaminha numa direçao de estender as responsabilidades pela criaçao de nucleos de paz e amor dos mais proximos aos mais distantes, independente de padroes limitados de uma sociedade burguesa e pos-industrial. Interessante conseguir superar lagrimas e constituir sorrisos em diversas experiencias de convivencia grupal e criar familias diferentes mas todas com a marca do respeito e da consideraçao de todos os delas participantes.
Márcia, estive com o professor (olha que orgulho) Danilo Alves na ocasião de um conhaque filosófico com meu e limão - opção barata para recém-formados - nesta sexta-feira e caímos neste assunto do modelo da família perfeita. Chegamos a conclusão de que nossas família, totalmente fora dos padrões, fizeram um belo trabalho, "produziram" sui generis, e somos gratos por isso.
RispondiEliminaChegamos a conclusão também de que ter de se encaixar neste padrão que se espera de família é muito doloroso e anti-natural, mas tudo bem, já que nós nos encaixamos em quase nada isso a gente tira de letra...